Qual a efetividade do ‘congelamento’ do ICMS para combustíveis?

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Os ‘problemas’ da realidade e da substituição tributária não definitiva

No último dia 29, foi publicado o Despacho nº 76/2021, por meio do qual o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) tornou pública a celebração do Convênio nº 192, também do dia 29, alterando a cláusula décima do Convênio nº 110/2007[1], nela incluindo os §§3º e 4º, que abaixo transcrevemos:

“§ 3º Excepcionalmente, no período de 1º de novembro de 2021 a 31 de janeiro de 2022, as informações de margem de valor agregado ou PMPF serão aquelas constantes no Ato Cotepe vigente em 1º de novembro de 2021.

  • 4º No período mencionado no § 3º, em caso de mudança de alíquota pela unidade federada, o valor do PMPF poderá ser alterado para adequação do valor fixado à nova carga tributária.”

Não vamos aprofundar as questões políticas em jogo, mas apenas ofertar um cenário macro em que a discussão se insere – assim fazemos com o propósito de evitar interpretações descasadas da realidade.

 

Existe um problema inequívoco de alta de preços de combustíveis, que está aumentando a pressão inflacionária. As origens são diversas, mas ocorre que 2022 é ano de eleições gerais no país, o que traz inegável peso político para a discussão.

O Planalto entende que o principal problema é o ICMS, então ajuizou a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão nº 68[2], apresentou o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 16/2021[3] e fomenta o trânsito célere do PLP 11/2020[4].

Os estados, em reação primária, rechaçaram todas as medidas, explicando que haveria perda de arrecadação massiva[5] em um momento sensível ainda de enfrentamento da pandemia de Covid-19. Mais recentemente, os estados se reuniram e aprovaram o que está sendo veiculado na imprensa como “congelamento do ICMS dos combustíveis”, evidenciando seus esforços nos limites de suas competências[6].

Evidentemente, o ICMS não é a única causa do encarecimento dos combustíveis, assim como os tributos federais ou o preço básico das refinarias; há um conjunto de complexos fatores, que passam também pelo preço do dólar e pelo valor do barril no mercado internacional, a determinar o preço final.

Superando enfim o sobrevoo político, admitimos que o ICMS, pela forma como é calculado, é mesmo um fator de incremento no preço dos combustíveis – e aqui, registramos a visão de que o ICMS pode e precisa sim ser melhorado, para este e outros fins, mas que não merece a alcunha de “grande vilão”.

Comecemos do básico: o ICMS é um imposto sobre circulação de mercadorias, via de regra calculado sobre o valor da operação com a mercadoria (base de cálculo) com aplicação de uma alíquota percentual (ad valorem).

Na dinâmica de tributação normal (sem substituição tributária), quanto maior for o valor da operação com a mercadoria, ainda que mantida a mesma alíquota, maior será o imposto a recolher.

Com a substituição tributária (ST), que é verdadeiramente o mais usual para os combustíveis, o que muda? A ideia, na ST “para frente”, é a de tributar antecipadamente, preferivelmente no elo da cadeia de circulação onde há menos contribuintes e com base em uma quantia presumida que se aproxime do valor que seria praticado na última venda da mercadoria ao consumidor.

Embora o ICMS seja – por força constitucional e da Lei Complementar nº 87/96 – um imposto plurifásico e não cumulativo, a tributação pelo ICMS-ST se dá em apenas um momento de circulação de mercadoria e relativamente a um único sujeito passivo (substituto tributário), com aplicação da alíquota não sobre o valor real da operação, mas considerada uma base de cálculo presumida.

Nessa linha, os métodos empregados pelas cláusulas oitava e nona do Convênio Confaz nº 110/2007 para alcance dessa base presumida são os de “margem de valor agregado” (MVA) e de “preço médio ponderado a consumidor final” (PMPF).

Cada estado fixa suas MVAs (percentuais a serem aplicados sobre o valor de venda efetivado pelo contribuinte substituto tributário) e seus PMPFs (preço médio ponderado a consumidor final do combustível considerado, com ICMS incluso, praticado em cada unidade federada), e pode atualizá-los quinzenalmente, na forma da cláusula décima do Convênio Confaz nº 110/2007.

Cada atualização nessas grandezas é divulgada pelos chamados Atos da Comissão Técnica Permanente do ICMS (Cotepe), a partir de pleitos dos estados embasados em estudos técnicos e pesquisas de mercado que demonstrem oscilações nos preços de cada combustível ao consumidor final (cláusula décima terceira do Convênio Confaz nº 110/2007).

De modo sintético, destarte, é assim que se operam a tributação dos combustíveis por ICMS-ST e a atualização dos elementos constitutivos da base de cálculo para tanto.

Só que é preciso, também, dar atenção àquilo que não muda com a substituição tributária do ICMS: a realidade continua sendo a pauta eminente, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2016, julgando o RE n° 593.849/MG e as ADIs 2.675/PE e 2.777/SP, promoveu revisão de sua jurisprudência e decidiu de forma diametralmente oposta à anteriormente firmada (em 2002, na ADI 1.851/AL), fixando o Tema de Repercussão Geral n° 201[7].

Na visão do STF, os aspectos da eficiência e praticidade da fiscalização, utilizados para firmar o precedente de 2002, não devem preponderar “na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS”; bem como não se pode “transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta”.

É jurisprudência constitucional, pois, que aquela base de cálculo presumida não é definitiva e cede à que se verificar na realidade, tendo o contribuinte o direito de pedir a restituição quando a base real for menor que a presumida – e diversos estados entendem (e legislaram no sentido de que) lhes é devido complemento de ICMS nos casos em que a base presumida se mostrar menor que a realmente praticada.

É neste arranjo fático jurídico que o Confaz, tentando fazer sua parte em minorar os danos da alta de preços, fez publicar um convênio que pretende congelar o valor de ICMS a ser recolhido. O texto do Convênio nº 192/2021 estabeleceu que, em todas as operações entre 01/11/2021 e 31/01/2022, o MVA e o PMPF serão aqueles de 01/11/2021, desde que mantidas as alíquotas estaduais tais quais fixadas em 01/11/2021.

Existe, no novo §4º da cláusula décima, importante salientar, uma ferramenta de controle não apenas da base de cálculo (congelamento de PMPF e MVA), mas da carga tributária: “em caso de mudança de alíquota pela unidade federada, o valor do PMPF poderá ser alterado para adequação do valor fixado à nova carga tributária”.

A intenção é das melhores, e certamente se calca na premissa macroeconômica de que os preços seguirão em alta, mas algumas perguntas podem ser legitimamente apresentadas pelos contribuintes acerca da questão:

  1. a) quais os PMPFs e MVAs de cada estado para 01/11/2021? São aqueles válidos em 29/10/2021, ou serão informados novos a valerem em 01/11/2021, ou poderá haver fixação retroativa?
     
  2. b) congelar o PMPF, se os preços podem eventualmente cair entre 01/11/2021 e 31/01/2022, não poderia ter um efeito indesejado pelos estados? Não seria preferível colocar o PMPF de 01/11/2021 como teto de base de cálculo do ICMS-ST para o período?
     
  3. c) qual o efeito prático de congelar MVA, se ela é apenas um percentual aplicado sobre o preço de venda pelo substituto tributário e este, por previsão e por experiência, continuará naturalmente oscilando? Acaba não havendo, aqui, um congelamento[8], já que a indexação ao preço praticado é elementar à equação e ao uso de MVA.
     
  4. d) considerando o ponto “c” acima, como fica a situação para os estados que preveem que a tributação se dá com aplicação da alíquota sobre o maior valor final de base, após cotejo entre as metodologias MVA e PMPF, se apenas um deles fica sob congelamento?
     
  5. e) se a ST não é definitiva, não há muitas dúvidas de que, quando os valores praticados na realidade se mostrarem menores que os utilizados na formação da base de cálculo presumida, haverá o direito de ressarcimento aos últimos contribuintes substituídos (postos de combustível). Mas, assumindo a ST não definitiva para ambos os sujeitos, o que ocorre se os estados puderem cobrar ICMS complementar quando o preço final de venda real superar a base de cálculo presumida “congelada”?
     
  6. f) a previsão de alteração de alíquotas viabilizando mudança nas MVAs e PMPFs “congelados” certamente tem como guia os casos de alta nas alíquotas que permita baixa de MVAs e PMPFs; mas acabou ficando aberta a hipótese oposta: se um estado promover a redução da alíquota, será possível uma alta nas bases de cálculo presumidas, e aí o contribuinte seguiria onerado da mesma forma?
     
  7. g) considerados os pontos “b”, “e” e “f”, não seria importante deixar claro que o Convênio traz aqui um benefício fiscal consistente na inviabilidade total (i) de cobrança posterior caso se verifique na prática real um valor superior ao “congelado” em 01/11/2021 e (ii) de aumento de PMPFs e MVAs caso haja redução de alíquotas por dado estado?

A depender das respostas, o pretendido alívio nos preços[9] pode acabar por ser apenas temporário, ou sequer ocorrer se os postos revendedores cobrarem a mais para garantir o caixa necessário à cobertura do risco real de cobrança do complemento de ICMS-ST pelos estados. Isso significaria a perda de toda a economia eventualmente gerada.

Não se prega, com estas observações, a omissão, a inação ou a rejeição desacompanhada de tentativas de solução por estados ou contribuintes, absolutamente. A boa vontade dos fiscos é evidente no Convênio CONFAZ nº 192/2021: talvez, mudanças simples na redação, prevendo um teto para o PMPF (e assim observando o princípio de realidade) poderiam cobrir alguns dos riscos apontados, como abaixo ofertamos na tentativa de apenas colaborar:

  • “§ 3º Excepcionalmente, no período de 1º de novembro de 2021 a 31 de janeiro de 2022, as informações de margem de valor agregado ou PMPF terão como teto aquelas constantes no Ato Cotepe vigente em 1º de novembro de 2021.
     
  • 4º No período mencionado no § 3º, em caso de majoração de alíquota pela unidade federada, o valor do teto do PMPF deverá ser reduzido proporcionalmente para adequação do valor fixado à nova carga tributária máxima.
     
  • 5º No período mencionado no § 3º, inclusive para os produtos em que haja MVA e PMPF, as cobranças deverão dar-se pelas Unidades Federadas com base no PMPF e, em qualquer hipótese e para todos os fins, observado o teto de carga previsto nos §§ 3º e 4º, vedada qualquer cobrança complementar.”

Muito mais do que em nossa tentativa de endereçamento do problema, pedimos foco nas perguntas que fizemos e meditação sobre as que não fizemos (podem ser muitas, reconhecemos). A finalidade do debate é alcançar soluções mais eficientes e dialogadas entre contribuintes e o Fisco, para que superemos, todos juntos, este momento de instabilidade.

 

Fonte: Jota