O pêndulo e a sistemática de desempate no Carf

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Uma vitória que depende do ‘pêndulo’ não é realmente uma vitória

A nova sistemática de desempate no âmbito do Carf já foi objeto de diversas colunas neste JOTA. Em texto recente, tratei do problema envolvendo a proposta de tese do ministro Luís Roberto Barroso que, após a alteração da sistemática de desempate no Carf, defende que a Fazenda Pública possa ingressar com ação em caso de derrota na esfera administrativa. Em texto mais antigo, tratei da questão envolvendo a forma como se deu a alteração da sistemática do voto de qualidade e os problemas que poderiam surgir de uma mudança tão drástica feita de maneira açodada.

A mudança no critério de desempate também é objeto de questionamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Com efeito, a sua constitucionalidade foi reconhecida por alguns ministros, mas ainda não houve decisão definitiva sobre o mérito da alteração promovida pela Lei n. 13.988/20.

 

Passados um ano e seis meses da mudança na sistemática do voto de qualidade, o Conselho acabou por revisar posições relevantes que antes eram decididas em desfavor do contribuinte. Alguns exemplos bem demonstram que a nova sistemática de desempate fez com que o Carf, e especialmente a sua Câmara Superior, alterassem de maneira drástica o cenário da jurisdição administrativa fiscal.

Em primeiro lugar, no acórdão nº 9101-005.728 a CSRF decidiu que não se aplica a limitação dos 30% para a compensação de prejuízos fiscais, determinando que em função do artigo 43 do CTN “a trava de 30% do lucro tributável na compensação dos resultados negativos não pode ser imposta a empresa extinta, inclusive por evento de cisão, fusão ou incorporação, também se assegurando, assim, a observância sistemática e racional das demais normas legais que estabelecem os limites e informam a tributação sobre a renda”.

Em segundo lugar, no acórdão nº 9101-005.757 a CSRF assentou que juros sobre capital próprio podem ser deduzidos ainda que sejam pagos ou creditados relativamente a períodos anteriores. Consta do voto vencedor que “o art. 9º da Lei 9.249/95, único dispositivo legal que rege a dedução de tal rubrica, apenas exige a apuração lucros pela entidade, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados” e que “não há limitação dos períodos abrangidos pela deliberação da entidade, devidamente apropriando e deduzindo a despesa. Por fim, a ementa menciona que “os normativos e atos infralegais não podem suprimir a amplitude de um regramento previsto pela legislação tributária, inaugurando limitações para a sua aplicação e observância, principalmente quando se trata de norma de apuração de base de cálculo de tributos”.

Em terceiro lugar, no acórdão nº 9101-005.773 a CSRF reviu sua posição envolvendo a CSLL sobre o ágio, decidindo que “a base de cálculo da CSLL é autônoma e legalmente delimitada por normas próprias, somente se verificando identidades com a apuração do Lucro Real quando, expressamente, assim for determinado pela legislação”. Acrescentou que “diferentemente do Lucro Real (art. 25 do Decreto-Lei 1.598/77), inexiste previsão legal para que as contrapartidas da amortização do ágio ou deságio não sejam computadas no cálculo base de cálculo da CSLL e tampouco encontra-se determinações próprias para a adição dos valores de ágio percebido em aquisição de participações societárias. Assim, a amortização contábil do ágio reduz a monta do lucro líquido do período, do qual se extrai a base de cálculo da CSLL, nos termos do art. 2 da Lei 7.689/88″.

Por fim, em quarto lugar, no acórdão n. 9101-005.767 a CSRF determinou a exclusão do frete, seguro e imposto de importação nos preços de transferência (PRL). Constou da ementa que “considerando as regras de preços de transferência como elementos de uma norma antielisiva específica, a qual tem como objetivo coibir a manipulação da precificação praticada entre partes relacionadas, visando à obtenção de vantagens fiscais indevidas em transações internacionais, a sua própria axiologia e finalidade confirmam a impossibilidade do cômputo dos valores de fretes, seguros e do Imposto de Importação, avençados e devidos a partes independentes, no preço praticado – cuja a dedução das bases tributáveis dos tributos sobre a renda é precisamente o objeto de seu controle”.

Não é o objeto deste breve texto analisar os argumentos ou o mérito das decisões. O que interessa é verificar que a nova sistemática de desempate fez com que o contribuinte obtivesse decisões favoráveis em casos nos quais, pelo antigo voto de qualidade do presidente da Turma, obtinha decisões contrárias.

Essa mudança foi chamada por alguns professores e estudiosos do direito tributário e do processo administrativo fiscal de “pêndulo”. O pêndulo, como todos sabemos, oscila de uma extremidade a outra preso por um ponto, mantendo seu movimento enquanto houver energia. Nessa figura, o ponto fixo seria o arcabouço legislativo interpretado e aplicado pelo Carf. As extremidades seriam as posições a favor e contra o contribuinte.

Estando certa a figura do pêndulo, as decisões contra o contribuinte não representariam a interpretação mais adequada da legislação, mas apenas um movimento em direção à extremidade fazendária. Da mesma forma, as decisões a favor do contribuinte também não seriam, necessariamente, a interpretação mais adequada da legislação tributária, mas apenas o movimento em direção à outra extremidade na jurisdição administrativa.

Em qualquer dos casos, sendo efetivamente um pêndulo, teríamos um período no qual o contribuinte seria vitorioso e, acabando a energia que empurra o pêndulo em direção à extremidade do contribuinte, voltar-se-ia à extremidade fazendária. Deve-se notar que essas mudanças no “pêndulo” da jurisdição administrativa ocorrem sem que haja qualquer alteração na legislação que possa justificar tais alterações.

Ainda que se possa concordar – o que é o meu caso – com a atual posição do Carf sobre os exemplos acima transcritos, é necessário que se perceba que essas vitórias são contingentes e temporárias. Se estamos tratando de um “pêndulo” interpretativo, mais cedo ou mais tarde, ele deverá se direcionar ao outro lado.

Por essa razão, o que se defende é que, muito mais do que uma mudança cosmética sobre o desempate no Carf, é necessário que se pense de maneira demorada e aprofundada sobre a jurisdição administrativa em matéria tributária. Muito mais do que criar mecanismos que garantam que o “pêndulo” seja direcionado a uma ou outra extremidade, devemos buscar que a interpretação mais adequada da legislação tributária prevaleça. Ainda, muito mais do que comemorar alterações a favor do contribuinte, deve-se buscar uma sistemática que garanta que tanto as vitórias quanto as derrotas sejam baseadas na lei, na jurisprudência e nos melhores argumentos.

O “pêndulo” do desempate gera insegurança. Se a interpretação da legislação tributária depende de um elemento externo à lei, se depende de um desenho institucional específico, então a legislação não serve mais de parâmetro para a orientação das condutas do contribuinte.

Em outras palavras, se o contribuinte não consegue determinar de antemão as consequências jurídicas de sua conduta pela legislação, não haverá segurança. Se a interpretação oferecida hoje pelo Carf pode ser alterada amanhã com uma mudança, não da legislação, mas do desenho do Carf, então a lei perde a sua autoridade e grande parte de sua função. Como afirma Humberto Ávila:

“Existe um estado de calculabilidade do Direito quando o cidadão tem, em grande medida, a capacidade de antecipar e de medir o espectro reduzido e pouco variável de consequências atribuíveis abstratamente a atos, próprios e alheios, ou a fatos, e o espetro reduzido de tempo dentro do qual a consequência definitiva será́ aplicada. A exigência de calculabilidade, portanto, não impede mudanças. Ela apenas é contrária a um tipo de mudança que fuja do espectro material e temporal de consequências antecipáveis pelo contribuinte, e que termine por frustrar a confiança daqueles que, com apoio nas normas jurídicas então em vigor, tomaram decisões, adotaram condutas, optaram por um tipo de negócio”.[1]

Como se depreende da lição do prof. Ávila, não se defende a imutabilidade do direito ou mesmo das instituições que o interpretam e aplicam. As alterações podem e, em muitos casos, devem ocorrer. O que se defende é que tais mudanças sejam feitas de maneira que não prejudiquem a segurança, a previsibilidade e a calculabilidade do direito tributário.

Reitere-se, por relevante: uma vitória que dependa do “pêndulo” não é realmente uma vitória. Ela pode ser uma vitória temporária e dependente daquele desenho institucional específico. Uma vitória que rapidamente pode se transformar em uma derrota. Parafraseando o vaticínio de Julius von Kirchmman, três palavras do legislador, e dezenas de vitórias viram lixo.[2]

Uma vitória efetiva seria contarmos com uma sistemática que favorecesse a correta e adequada intepretação da legislação tributária. Seja ela favorável ao contribuinte ou favorável à Fazenda. Em qualquer caso, ela favoreceria a segurança jurídica. E, muito provavelmente, pararia o pêndulo no meio do caminho.

 

Fonte: Jota