A arbitragem tributária no estado do Mato Grosso: Projeto de Lei nº 531/2.020

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Caminho indicado para tal desenvolvimento seria a criação de um regime jurídico nacional de arbitragem tributária

Falar de arbitragem tributária no Brasil é falar de um sistema multiportas de solução de conflitos e, portanto, de uma variedade de meios para resolver controvérsias tributárias. Essas controvérsias não seriam apenas decididas em processo judicial ou administrativo[1], mas também em outro âmbito heterocompositivo de solução jurisdicional: o campo arbitral.

Um novo âmbito heterocompositivo de decisão de disputas tributárias pode e deve ser visto como um instrumento de justiça tributária para grandes e pequenos contribuintes, tal como o processo judicial. Mas um instrumento que, diferentemente deste último, proporciona uma definição célere das questões a ele submetidas e que traz, mais rapidamente, segurança jurídica.

Parece importante salientar estes pontos quando se analisa o Projeto de Lei nº 531/2.020 (PL), de autoria do deputado estadual Xuxu Dal Molin e que pretende estabelecer a arbitragem em matéria tributária no estado do Mato Grosso.

Trata-se de projeto de lei estadual que é fortemente inspirado no modelo português de arbitragem tributária (especialmente o Decreto-Lei nº 10/2.011, que contempla o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT) e que (i) tem amplo espectro de abrangência em relação à matéria arbitrável[2]; e (ii) prevê a criação do Conselho de Arbitragem Tributária[3], que teria, no procedimento arbitral mato-grossense, um papel semelhante ao que o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) desempenha na arbitragem tributária portuguesa[4], podendo, inclusive, designar os árbitros responsáveis pelo julgamento da controvérsia[5].

A inspiração no modelo português é salutar; cuida-se de um desenho de sistema heterocompositivo arbitral que tem produzido bons resultados e correspondido às expectativas da Administração Tributária e de pequenos, médios e grandes contribuintes[6]. Mas o desenho da arbitragem tributária portuguesa produz resultados relevantes exatamente porque é pensado para a realidade daquele país.

Para que a arbitragem tributária alcance bons resultados no Brasil e funcione como meio efetivo de solução de controvérsias para todo e qualquer contribuinte e para a Administração Tributária, é necessário que ela seja construída com base na realidade e nos problemas brasileiros.

Estas e outras questões foram debatidas em audiência pública sobre o PL, ocorrida na Assembleia Legislativa do Mato Grosso no dia 24 de junho de 2021. Dúvidas e roteiros para aperfeiçoamento e aprovação do PL foram então discutidos.

Julgamos importante abordar algumas destas dúvidas, porque elas são comuns nas discussões que envolvem arbitragem tributária, e apresentar subsídios para fomentar o desenvolvimento do instituto e indicar um possível caminho para a instituição da via arbitral tributária.

Neste sentido, uma das dúvidas levantadas na audiência pública diz respeito à suposta indisponibilidade do crédito tributário, o que impediria a sua discussão na instância arbitral.

Trata-se de mito que, sobretudo nos últimos anos, vem sendo abandonado no país: o crédito tributário é, na verdade, disponível. Ele constitui manifestação de interesse público secundário (interesse arrecadatório), que não se confunde com o interesse público primário (persecução dos fins do estado)[7] e que, como tal, tem a disponibilidade definida nos termos da lei (como mostram os inúmeros exemplos de incentivos tributários, anistias, remissões, parcelamentos e, mais recentemente, transações tributárias[8]). Não há, portanto, empecilho à sua discussão em arbitragem tributária.

Outra dúvida comum mencionada na audiência pública diz respeito à suposta renúncia de receita na arbitragem tributária. Assim como a solução judicial do litígio, a solução arbitral não implica renúncia de receita. A via arbitral serve apenas como meio alternativo (aos meios judicial e administrativo) de decisão sobre, por exemplo, a legalidade do lançamento tributário. “Não há, tecnicamente”, como diz Tathiane Piscitelli sobre a arbitragem tributária, “renúncia de receita, mas decisão impositiva, dada por terceiros imparciais, sobre o conteúdo do lançamento tributário.”[9]

Estas dúvidas não constituem, portanto, obstáculos ao desenvolvimento do instituto. Mas o caminho indicado para tal desenvolvimento seria, na opinião dos autores, a criação de um regime jurídico nacional de arbitragem tributária, instituído por lei ordinária aprovada pelo Congresso e, preferencialmente, precedido de alterações no Código Tributário Nacional (CTN)[10]. Isto daria maior segurança jurídica ao sistema arbitral tributário e permitiria que ele fosse aplicado, de modo coerente, na esfera de estados/DF e municípios.

Seria importante incluir ainda, neste regime nacional, um dispositivo como o do art. 29 da Lei nº 13.988/2.020, segundo o qual: “Os agentes públicos que participarem do processo de composição do conflito, judicial ou extrajudicialmente, com o objetivo de celebração de transação nos termos desta Lei somente poderão ser responsabilizados, inclusive perante os órgãos públicos de controle interno e externo, quando agirem com dolo ou fraude para obter vantagem indevida para si ou para outrem”.

O referido dispositivo não apenas é fundamental na disciplina federal da transação (sendo uma das razões de seu sucesso), mas também, e com as devidas adaptações, é relevante em relação aos demais métodos alternativos (ou adequados) de solução de disputas tributárias, sejam autocompositivos, sejam heterocompositivos.

Sua inclusão na disciplina nacional da arbitragem tributária, com acréscimo dos agentes privados partícipes da solução de disputas, daria amparo normativo e maior conforto a todos os atores envolvidos na sua aplicação; sem isto, o receio destes atores de que sua conduta venha a ser alvo de órgãos de controle interno e externo poderia prejudicar, ou mesmo impedir, a submissão de conflitos tributários à via arbitral.

A segurança jurídica, a coerência e o amparo normativo aos atores (advindo de norma semelhante à do art. 29 da Lei nº 13.988/20) assinalam que um regime nacional de arbitragem tributária constituiria opção melhor do que a criação do instituto na esfera estadual.

Independentemente das sérias dúvidas relativas à constitucionalidade da iniciativa na seara dos estados[11], uma arbitragem tributária como a do PL do Mato Grosso parte da premissa de que poderia haver múltiplos regimes arbitrais tributários, desenhados não apenas pelos estados/DF, mas também pelos municípios. Esta amplitude seria desejável? Ela não implicaria o risco de disseminação de modelos incoerentes e contraditórios de arbitragem tributária, que poderiam prejudicar, ou mesmo impedir, sua consolidação no Brasil?

Todos estes riscos não podem ser desconsiderados. Um regime arbitral com estas características seria permeável à imputação de inconstitucionalidade, e poderia representar um entrave ao desenvolvimento da arbitragem tributária.

A busca pelo maior acesso à justiça tributária, e pela maior eficiência na arrecadação estatal, exige repensar o tema, para evitar que a arbitragem tributária queime a largada e, em vez de resolver litígios, passe a ser fonte deles.

Essas são apenas algumas reflexões de caráter macro que, ainda que possam ser justificadamente superadas, ensejarão uma análise crítica construtiva pormenorizada das especificidades de cada projeto de arbitragem tributária, a exemplo deste do Mato Grosso.


Fonte: Jota

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[1] Os meios autocompositivos de solução de disputas tributárias (como a mediação e a transação tributárias) não serão objeto deste artigo.

[2] Art. 2º do PL: “A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: I – a declaração de ilegalidade de atos, de autos de infração, créditos e tributos; II – a declaração de ilegalidade de atos em matéria tributável, de atos de determinação da base de cálculo e de atos de fixação de valores patrimoniais.”

[3] Art. 30 do PL: “O Conselho de Arbitragem Tributária será composto por 15 membros designados para mandatos de 2 (dois) anos sendo: I – 3 (três) indicados pela Secretaria de Fazenda do Estado de Mato Grosso; II – 3 (três) indicados pelo Conselho de Contribuintes Fiscais; III – 3 (três) indicados pela Ordem do Advogados do Brasil, seccional de Mato Grosso; IV – 3 (três) indicados pelos Ministério Público Estadual de Mato Grosso; V – 3 (três) indicados pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso.”

[4] Cf. DOMINGOS, Francisco Nicolau. Estrutura do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD): Funcionamento, Escolha dos Árbitros e Limites Institucionais. In: PISCITELLI, Tathiane et al. (orgs.). Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais Brasileiros e a Experiência Portuguesa. 2ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2.020, pp. 61 a 71 e VILLA-LOBOS, Nuno e PEREIRA, Tânia Carvalhais. O Caso Particular da Arbitragem Tributária no Âmbito das Políticas Públicas em Matéria de Justiça Tributária. In: VILLA-LOBOS, Nuno e PEREIRA, Tânia Carvalhais (orgs.). Arbitragem em Direito Público. São Paulo: FGV Projetos/CAAD, 2019, pp. 7 a 24.

[5] Art. 6º do PL: “Quando o tribunal arbitral funcionar com árbitro singular, o árbitro é designado pelo Conselho de Arbitragem Tributária, dentre a lista dos árbitros organizada pelo conselho. §1º Quando o tribunal arbitral funcione com intervenção coletiva, os árbitros são designados: I – pelo Conselho de Arbitragem Tributária, dentre a lista dos árbitros organizada pelo conselho ou; II – pelas partes, cabendo a designação do terceiro árbitro, que exerce as funções de árbitro-presidente, aos árbitros designados ou, na falta de acordo, ao Conselho de Arbitragem Tributária, mediante requerimento de um ou de ambos os árbitros. §2º No caso previsto no inciso I, os árbitros podem não constar da lista dos árbitros que compõem o Conselho de Arbitragem Tributária.”

[6] Cf: <https://www.caad.org.pt/comunicacao/imprensa/entrevista-de-nuno-villa-lobos-ao-dinheiro-vivo>, acesso em: 25 de junho de 2021, e <https://www.dinheirovivo.pt/economia/processos-fiscais-arbitragem-resolve-em-45-meses-estado-demora-54-anos-12785976.html>, acesso em: 25 de junho de 2021.

[7] Como diz André Luiz Fonseca Fernandes em artigo ainda no prelo: “Não se ignora, neste ponto, que a distinção entre interesse público primário e interesse público secundário vem sendo fortemente criticada por boa parte da doutrina de Direito Administrativo, sob o fundamento de ser confusa e imprecisa. (…) Referida distinção é, entretanto, comumente adotada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, razão pela qual é mantida neste trabalho.” Em complemento, há ainda amparo doutrinário relevante para a distinção (PISCITELLI, Tathiane. Arbitragem no Direito Tributário: Uma Demanda do Estado Democrático de Direito. In: PISCITELLI, Tathiane et al. (orgs.). Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais Brasileiros e a Experiência Portuguesa. 2ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2.020, pp. 191/192).

[8] Cf. PISCITELLI, Tathiane. Ibidem, pp. 190 a 193 e TORRES, Heleno Taveira. Conciliação, Transação e Arbitragem em Matéria Tributária. In: BOSSA, Gisele Barra et al. (coord.). Medidas de Redução do Contencioso Tributário e o CPC/15: Contributos Práticos para Ressignificar o Processo Administrativo e Judicial Tributário. São Paulo: Almedina, 2017, pp. 318/319.

[9] PISCITELLI, Tathiane. Ibidem, p. 191.

[10] MASCITTO, Andréa. Requisitos Institucionais para a Arbitragem entre Fisco e Contribuintes no Brasil: Necessidade de Norma Geral. In: PISCITELLI, Tathiane et al. (orgs.). Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais Brasileiros e a Experiência Portuguesa. 2ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2.020, pp. 139 a 147.

[11] Leonardo Varella Giannetti afirma que: “(…) os Estados e Municípios não possuem competência para criar e estabelecer um regime jurídico de arbitragem tributária totalmente novo. Esses entes da federação deverão partir da legislação federal existente para, então estabelecer algumas regras procedimentais, tal qual autoriza o art. 24, XI, da Constituição Federal.” GIANNETTI, Leonardo Varella. Arbitragem no Direito Tributário Brasileiro: Possibilidade e Procedimentos. Tese (Doutorado em Direito) – PUC/MG. Belo Horizonte, 2017, p. 205. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_GiannettiLVa_1.pdf>. Acesso em: 27 de junho de 2021.