O que está em disputa no julgamento do STF sobre o voto de qualidade no Carf

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Instrumento deixou de existir em 2020 e desempates são favoráveis aos contribuintes. STF decide na quarta (22/3)

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará, nesta quarta-feira (23/3), se é constitucional o dispositivo que prevê o desempate a favor dos contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O modelo substituiu o voto de qualidade no Carf, que dava o desempate ao Fisco e existiu até abril de 2020.

O cenário é de incerteza, já que o julgamento reinicia empatado – o ministro aposentado Marco Aurélio Mello foi favorável ao retorno do voto de qualidade no Carf, enquanto Luís Roberto Barroso aceitou seu fim, desde que a Fazenda possa acionar a Justiça em caso de derrota. A CASA JOTA e o Insper reuniram especialistas para discutir o julgamento e o cabimento do desempate pró-contribuinte, nesta terça-feira (22/3).

Está em discussão o dispositivo 19-E da chamada Lei do Contribuinte Legal (Lei 13.988/2020). Ele prevê que, em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, o voto de qualidade não se aplica e a questão é resolvida a favor do contribuinte.

No plenário, o STF julgará se há inconstitucionalidade formal, já que a Lei resultou de uma medida provisória que tratava de transação tributária. O dispositivo seria, na perspectiva organizações que o questionam, um elemento sem relação com o tema original da medida. As ADIs que tratam da questão são: 6.399, 6.403 e 6.415.

“A inclusão do artigo foi um contrabando. Na calada da noite, se jogou um dispositivo que não guarda conexão com o tema. Para mim, claramente há uma inconstitucionalidade formal”, avaliou Sergio André Rocha, professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Para ele, a inconstitucionalidade pararia em como se deu a aprovação da mudança legal. “O modelo de desempate atual distorce o processo administrativo, mas isso não o torna inconstitucional na matéria, assim como não vejo inconstitucionalidade no modelo anterior. A Constituição nada diz sobre como deve se dar o processo administrativo”, completou.

Eduardo Schoueri, professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), não enxerga nenhum tipo de inconstitucionalidade: “Existia uma correlação temática, porque a MP era sobre transação tributária com objetivo de reduzir o litígio. A jurisprudência que o STF tem sobre contrabando legislativo e jabutis é muito diferente”, disse.

“Também não dá para se falar em inconstitucionalidade material. Não vejo como aplicar a prevalência do interesse público da Constituição nesse caso, por exemplo”, afirmou.

Na perspectiva do procurador da Fazenda Nacional Moisés Carvalho, que atua junto ao Carf desde 2008, o dispositivo que colocou fim ao voto de qualidade no Carf desvirtuou o processo administrativo. Além disso, em vez de reduzir litígios, ele promove o contrário.

“O Legislador substituiu a vontade do administrador, pois se há empate são cancelados os créditos de tributo, mas as penalidades continuam”, disse ele. Na prática, o efeito seria o de a Fazenda questionar as decisões após empates, que não teriam força para alterar condutas.

“O Fisco não vai se adequar às decisões, em que basta mudar uma pessoa e se mudará o entendimento. Antes, os contribuintes ao não concordar com o voto da qualidade, iam à Justiça. O dispositivo é um desincentivo à transação, que busca a resolução de litígios por meio de concessões reciprocas entre as partes”, disse Carvalho.

A discussão sobre o desempate pró-contribuinte ganha relevância à medida que o Carf estuda a volta das sessões presenciais, sem o limite de valor dos processos. Abre-se a possibilidade de aplicação do mecanismo para os casos bilionários que tramitam no conselho. Hoje, em caso de vitória do contribuinte no tribunal administrativo não é possível à Fazenda Nacional recorrer à Justiça.

Em seu voto, o ministro Barroso trouxe a condição de que, se mantido desempate pró-contribuinte no Carf, a Fazenda Nacional poderia ir ao Judiciário. Essa possibilidade não é pedida nas ADIs e ainda é cercada de dúvidas sobre como funcionaria na prática.

“Isso não poderia ser seguido. O Carf é um órgão da Fazenda, não faz sentido litigar contra si mesmo”, opinou Schoueri, da USP. Para o procurador Carvalho, ainda não está claro como isso poderia acontecer, mas acredita que eventuais ações na Justiça seriam contra os contribuintes.

Se esse modelo for seguido, o receio é que aumente a judicialização de casos já julgados pelo Carf. “Temos um contencioso que atinge 36,8% do PIB na administração tributária, que poderá desaguar no Judiciário. Há o risco de transformar o Carf em um tribunal de passagem. A dúvida em relação à legislação tributária deveria ser sanada pela redução de complexidade e incertezas”, afirmou Maria Raphaela Matthiesen, pesquisadora no Insper.

Na visão dela, o atual modelo, em fase de testes, se mostra melhor do que o anterior. A percepção é acompanhado pelo professor Schoueri: “Para o sistema tributário, tirar a prerrogativa de que se tiver empate o Fisco leva, me parece correto para não premiar o legislador por editar uma lei complexa”.

O professor Rocha, da UERJ, também é crítico. “O processo administrativo fiscal trata de a administração pública rever um ato dela própria. O modelo atual não reflete o processo como instrumento de autorrevisão”, disse ele.

Caso o STF decida manter o fim do voto de qualidade no Carf, o sistema de indicações de conselheiros por contribuintes deveria ser revisto, na visão do procurador da Fazenda e professor do Insper Leonardo Alvim: “O que me aflige não é o desempate ser pró-contribuinte, mas a forma de escolha dos conselheiros. A partir do momento em que se tem o poder de extinguir o crédito tributário, a autonomia dele corre perigo”.

Atualmente, os representantes dos contribuintes são indicados por Confederações Econômicas de nível nacional, por meio de lista tríplice, com a exigências sobre conhecimentos tributários próprios da atuação. No final, a indicação de um comitê de conselheiros a partir desse lista é referendada pelo Ministério da Economia.


Fonte: Jota